Covid-19 e a Morte de Crianças e Adolescentes no Brasil

Covid-19 e a Morte de Crianças e Adolescentes no Brasil

NOTIFICAÇÃO

No final de janeiro, uma revisão sistemática feita em 138 países colocou o Brasil como o país com a maior taxa de óbitos de jovens por covid-19. [1] Agora, o maior ensaio clínico já realizado para avaliar as características da covid-19 na população pediátrica no país descreve os fatores de risco de morte para crianças e adolescentes hospitalizados. [2]

“A COVID-19 em crianças e adolescentes era considerada não preocupante na maioria dos casos, no entanto, nos deparamos com uma proporção de casos de morte durante a internação hospitalar praticamente oito vezes maior do que o esperado. Foi, infelizmente, uma desagradável surpresa”, disse ao Medscape o líder da pesquisa, Dr. Eduardo Oliveira, pediatra e professor titular do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A pesquisa descreve os desfechos clínicos e os fatores de risco de morte observados em 11.613 crianças e adolescentes hospitalizados por infecção pelo SARS-CoV-2 confirmada. A partir de registros realizados desde o início da pandemia (março de 2020) até janeiro de 2021, o artigo traz informações sobre 886 pacientes de até 20 anos de idade que morreram em uma mediana de seis dias [3,4,5] após internação hospitalar por covid-19.

O trabalho contou com profissionais da UFMG, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e da University of California San Diego (UCSD), nos Estados Unidos. “Utilizamos um grande banco de dados coletados pelos profissionais da linha de frente do Sistema Único de Saúde (SUS) e dos hospitais particulares”, referiu o Dr. Eduardo. Para entrar no Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe), os pacientes precisavam apresentar sintomas de gripe e pelo menos um dos seguintes: dispneia, saturação de oxigênio < 95% em ar ambiente, cianose ou sintomas específicos para crianças (retração intercostal, flaring nasal, desidratação ou falta de apetite).

“É um artigo muito bem escrito, com uma metodologia muito interessante e um número de crianças incluídas que poucos estudos no mundo, talvez nenhum, teve a oportunidade de incluir”, comentou para o Medscape o Dr. Marco Aurélio Palazzi Sáfadi, diretor do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

“A principal limitação é o fato de ter sido restrito a crianças dentro do contexto hospitalar, e sabemos que existe um cenário também bastante grave da doença que nem mesmo tem acesso a hospitais.”

Como outras limitações da pesquisa o pediatra mencionou as próprias de uma análise de fontes de dados secundários, sem aceso a informações importantes e possíveis falhas e omissões. Os pesquisadores não tiveram acesso aos registros hospitalares de resultados laboratoriais, aos cursos clínicos detalhados, nem às terapias recebidas pelos pacientes.

Independentemente das limitações inerentes ao tipo de estudo avaliado, o trabalho tem muitos méritos e reproduz em números e evidências algo que já imaginávamos. Destaca a inequidade do impacto dos desfechos graves e a mortalidade condicionada por situações geográficas. Em São Paulo, onde temos hospitais bem estruturados, não temos visto mortalidade relevante por covid-19. O número de óbitos de crianças é muito baixo em relação ao que se reporta no Brasil”, acrescentou o Dr. Marco Aurélio.

“Se há uma boa notícia na pandemia é que os casos graves em crianças e adolescentes são raros”, resumiu o pediatra Dr. Renato Kfouri, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

“Os menores de 20 anos são 1,4% do total de hospitalizações e 0,33% das mortes por covid-19 deste ano. Então, quando se fala em acometimento de formas graves, há distribuição desproporcional em crianças e adolescentes. Mas os números absolutos são grandes, porque todos os números são gigantes na covid-19.”

Os números são impactantes. Só este ano, até o dia 05 de junho perderam-se 232 vidas de bebês menores de um ano, 123 de um a cinco anos e 418 de 6 a 19 anos. Como coloca o Dr. Renato: “1.500 mortes em um ano é mais do que qualquer outra doença prevenível por vacina.”

Idade e comorbidades

Os pesquisadores descreveram em que medida o maior risco de morte foi associado a idade, número de comorbidades, raça e disparidades socioeconômicas.

O risco de morte mais do que duplicou entre menores de dois anos (razão de risco ou hazard ratio, HR, de 2,36; intervalo de confiança, IC, de 95% de 1,94 a 2,88) e adolescentes de 12 a 19 anos (HR de 2,23; IC 95% de 1,84 a 2,71), em comparação com crianças de 2 a 11 anos.

A presença de comorbidades (doença cardíaca, doença pulmonar, asma, doença renal, distúrbio neurológico, doença hematológica, diabetes, obesidade, imunodeficiência, malignidade, estado pós-transplante e alteração cromossômica ou síndromes) aumentou o risco de morte.

“Praticamente qualquer uma das comorbidades dobrou o risco”, resumiu o Dr. Eduardo, ressaltando que, em crianças com síndrome de Down, o risco foi quase três vezes maior. A exceção foi a asma, que diminuiu o risco de morte (HR de 0,60; IC 95% de 0,42 a 0,85).

O desfecho negativo aumentou com o número de comorbidades: três (HR de 7,28; IC 95% de 4,56 a 11,6) duas (HR de 4,96; IC 95% de 3,80 a 6,48) e uma (HR de 2,96; IC 95% de 2,52 a 3,47) em relação àqueles sem nenhuma doença.

“Entre adolescentes e crianças que desenvolvem formas graves, necessitam hospitalização, e morrem, cerca da metade tem alguma doença crônica. Cardiopatia, obesidade (no caso dos adolescentes, mais frequente) e doença pulmonar crônica são os três fatores de risco mais encontrados no país. Não se pode desprezar a doença inflamatória multissistêmica, uma complicação que tem acometido adolescentes, mas dentro de um cenário bastante raro”, indicou o Dr. Renato.

Desassistidos e em Situação de Vulnerabilidade Social

O risco de morte de crianças e adolescentes indígenas foi mais de três vezes maior do que o de brancos (HR de 3,36; IC 95% de 2,15 a 5,24).

Uma parte importante das mortes foi atribuída à falta de estrutura para assistência hospitalar. Os dados mostram que uma grande proporção de crianças e adolescentes não teve acesso à unidade de terapia intensiva (UTI) pediátrica nem ao suporte de oxigênio. De acordo com o estudo, 3 a cada 10 pacientes mortos não foram admitidos na UTI (36% nas regiões Nordeste e Norte, e 23% nas regiões Sul e Sudeste) e, segundo os autores, isso provavelmente ocorreu por falta dessas instalações.

“Provavelmente 10% dessas mortes poderiam ter sido evitadas se houvesse UTI pediátrica e suporte ventilatório adequados. Isso foi muito triste de ser observado”, acrescentou o Dr. Eduardo.

Os autores pontuaram que as desigualdades sociais, exacerbadas pelas comorbidades, podem ter contribuído sinergicamente para ampliar a carga da covid-19. A pandemia evidenciou a falta de estrutura, principalmente nas regiões Norte e Nordeste do país, e o risco de morte foi maior na região Norte (HR de 1,55; IC 95% de 1,22 a 1,98) e Nordeste (HR de 2,06; IC 95% de 1,68 a 2,52) do que na região Sudeste.

Com esta análise, os autores propõem agora que as necessidades específicas de subgrupos mais suscetíveis de pacientes pediátricos sejam consideradas nas estratégias preventivas e terapêuticas. “Temos de pensar em políticas de curto, médio e longo prazo”, refletiu o Dr. Eduardo.

“No curto, talvez seja bom vacinar esses grupos prioritários o mais rápido possível. As vacinas já estão liberadas para os adolescentes em alguns países, e acho que a questão da idade é importante. Para as crianças menores de dois anos ainda estão testando, mas se tiver aprovação, vejo como um outro grupo muito candidato a receber logo.”

Consultado sobre a vacinação de adolescentes, o Dr. Renato afirmou que, tendo um risco muito menor quando comparados com adultos, os adolescentes saudáveis devem ser os últimos a serem vacinados. “À medida que o calendário for avançando nos adultos, acho que a tendência é vacinar os adolescentes com comorbidades também.”

Para o Dr. Renato, a segurança não pode ser negligenciada: Se uma vacina leva, por exemplo, a um caso de trombose a cada 500.000 vacinados, esse risco é tolerado, visto que o número de beneficiados vai ser muito maior do que os eventuais casos de complicações por conta da vacina; mas a mesma incidência pode inviabilizar uma vacina anticovídica na pediatria, pois as raras complicações das vacinas talvez causem mais problemas do que as raras complicações da doença. Até agora, para adolescentes a partir de 12 anos de idade, só há dados publicados com a vacina da BioNTech/Pfizer.

“A questão da segurança precisa ser sempre muito bem pesada para não trazermos mais malefícios do que benefícios”, afirmou o Dr. Renato.

Tendência Preocupante

A proporção de casos pediátricos de covid-19 está em alta. Embora parte do aumento proporcional possa ser devido à vacinação de adultos, há motivo de preocupação. “Foram praticamente oito meses para atingir 12.000 casos em crianças, e agora, em quatro meses, já tivemos 10.000 crianças hospitalizadas com covid-19 confirmada”, referiu o Dr. Eduardo, com base em dados da segunda semana de janeiro até maio de 2021. “É muito preocupante”, disse ele.

Trabalhando com dados preliminares das 52.000 crianças hospitalizadas com suspeita de covid-19 registrados neste período de quatro meses, mas limitando-se à avaliação das 9.950 crianças com covid-19 confirmada, o percentual de óbitos fica em cerca de 7,9%. “São dados preliminares, mas muito próximos dos observados em nosso estudo publicado, em que 7,6% dos menores de 20 anos com covid-19 confirmada por PCR morreram no hospital.”

A mortalidade observada pelos pesquisadores é a maior do que a relatada nos estudos pediátricos porque reflete provavelmente apenas o desfecho dos pacientes na extremidade mais grave do espectro. Mas, segundo os autores, esse desvio se deve em parte à incapacidade de o país fornecer um maior nível de atenção aos pacientes mais graves, especialmente em regiões menos desenvolvidas.

A metodologia, que excluiu pacientes sem confirmação laboratorial da infecção pelo SARS-CoV-2, pode ter contribuído ainda mais para a seleção de pacientes mais graves. Mas a pesquisa oferece também uma perspectiva da capacidade de testes, inferior à demanda clínica, pela qual os pacientes com doenças mais graves são priorizados. Dos 82.055 pacientes com menos de 20 anos incluídos no banco de dados, os que tiveram um teste positivo (11.163) foi um número levemente superior aos que não foram testados (4.000) ou tinham essa informação faltando no prontuário (6.000).

Em um artigo que acompanha a edição, dois epidemiologistas especialistas em equidade em saúde, os Drs. Oscar J Mujica, da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e Cesar Gomes Victora, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), reconhecem que a distribuição eco-social da covid-19 é consistente com o que tem sido observado até agora para a maioria das doenças e problemas de saúde.

As circunstâncias adversas enfrentadas por muitas crianças e adolescentes em países de média e baixa renda levam à vulnerabilidade e a um risco desproporcionalmente maior de morte por covid-19. No primeiro ano da pandemia teve um custo desproporcionalmente concentrado em segmentos da população em maior vulnerabilidade social [3] e não é hora não deixar ninguém para trás, e “reconhecer a urgência de transcender a retórica e avançar na formulação e implementação de políticas sociais e de saúde pró-equitativas”. [4] Porque, como o Dr. Marco Aurelio lembrou, “mesmo que no Brasil este grupo represente < 0,3% do total de mortes por covid-19, em outros países é < 0,1%.”

Fonte: Medscape – Por: Roxana Tabakman, 2 de julho de 2021

” Os artigos aqui postados são de responsabilidade exclusiva de seus autores e respectivas fontes primárias e não representam a opinião da ANAD/FENAD”

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